Continuando a reflexão sobre a recepção da cultura clássica na poesia brasileira contemporânea, gostaria de me deter aqui na personagem de Penélope, que considero ser uma das personagens mais interessantes da Odisseia.
Central para a trama do poema, afinal, conta-se ali a história da fidelidade entre os esposos em meio a perigos e seduções, ela é a única figura humana a ter a métis comparável à de Odisseu.
Suas aparições, no entanto, são sempre bastante elusivas. Homero não deixa claro suas motivações, nem o que de fato ela sabe nas diversas situações. Por exemplo: enquanto Odisseu se encontra em Ítaca disfarçado de um velho mendigo, teria ela o reconhecido antes que ele se revelasse? Esse é um tema de debate entre os estudiosos.
Se a recepção literária se faz pela apropriação das palavras dos poetas, mas também por suas lacunas - que são como que um convite para que os autores posteriores as preencham, talvez seja por causa do silêncio de Penélope que escritores, desde as Heroides de Ovídio, referem-se às aventuras da Odisseia a partir de sua perspectiva.
Em nosso contexto contemporâneo, no qual a consciência do silêncio do feminino na tradição ocidental, entendido como silenciamento, se torna particularmente aguda, a voz de Penélope se faz então especialmente ouvida, por exemplo, no livro Viajes de Penelope (1980) da escritora cubana Juana Rosa Pita e na Penelopiad (2005) de Margaret Atwood.
Também na literatura brasileira, Penélope se faz presente, em romances como o Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) de Clarice Lispector e A doce canção de Caetana de Nelida Pinon. E também na poesia, por exemplo, na obra de Myriam Fraga (o poema Penélope, publicado em Poesia Reunida, 2008 e, anteriormente, em As purificações ou o sinal de Talião, 1981), Jeanne Callegari (com um brevíssimo poema, Penélope, publicado na Modo de usar), Hugo Langone e Ana Martins Marques.
Quero escrever aqui sobre esses dois últimos autores, começando por Hugo Langone para depois, em um próximo post, falar de Ana Martins e sua série de seis poemas intitulados Penélope.
Em Qual um historiador, presente no livro Do nascer ao por um sol, um sacrifício perfeito (2015) de Hugo Langone, Penélope aparece ao lado de outras personagens famosas da Antiguidade, às margens do mar:
Qual um historiador
Não se sabe que é cruel o mar
Até que se prostrem Penélope
Dido, Mônica, às suas margens
Até que se prostrem onde o mar toca a costa
E azul nenhum vale a terra firme
Que talvez florirá hoje, amanhã
Em mil anos.
Ao lado de Penélope e Dido, personagens épicos, o poema menciona Mônica, mãe de Agostinho. É que também ela, figura real, transformou-se em símbolo literário nas Confissões de seu filho.
Monica, a meu ver, é a chave para a leitura desses versos: na passagem das Confissões em que Agostinho a abandona, no norte da África, para estabelecer uma escola de retórica em Roma (5.8), a cena é construída a partir da evocação do abandono de Dido por Enéias no livro IV da Eneida.
Entendo que essa evocação indicaria que o lamento de Mônica é análogo ao de Dido, mas o que está em jogo é mais do que isso: por meio da alusão ao texto de Virgílio, o lamento de Mônica ganha inteligibilidade a partir das lágrimas dela.
Se, em uma passagem anterior (1.13), Agostinho se lamenta por, durante seus estudos, ter chorado pela morte que Dido infligiu a si mesma por amor, esquecendo-se de lamentar o próprio estado decaído, aqui o tormento dela, descrito na Eneida, é a imagem estruturante pela qual ele pode rememorar a tristeza de sua mãe, bem como o recurso retórico pelo qual ele pode torná-la memorável.
Tendo em mente que Agostinho, escrevendo no fim do séc. IV d.C., já tem Virgílio como um clássico, isso nos manifesta o poder que, para o bispo de Hipona, os grandes poetas do passado detinham em iluminar a experiência humana. Esse também é o caso do próprio Virgílio: escrevendo no I a.C. e concebendo a Eneida como imitatio da Ilíada e da Odisseia (o que o seu primeiro verso arma virumque cano manifesta), ele olha para Homero como um clássico - como o seu mestre no lógos, aquele que lhe ensinou, entre outras coisas, o quão cruel é o mar.
Mônica, nas Confissões, é retratada a partir da imagem de Dido. Mas a própria Dido, na Eneida, é construída em contraste com Penélope: enquanto uma é abandonada por um herói que deve seguir sua missão divina, a outra, após longa espera, finalmente acolhe de volta o marido, que, para o retorno, teve que recusar a proposta de imortalidade de uma deusa, Calipso, em nome da humanidade que gostaria de ter de volta.
Temos, assim, no poema de Langone, a recepção de uma tradição de recepção. Esse é o seu sentido profundo: manifestar o poder dos clássicos em iluminar nossa vida, tal como Penélope iluminou a experiência da Dido de Virgílio e Dido, da Mônica das Confissões. Não se sabe o quão cruel é o mar até que a poesia encontre palavras para expressá-lo.
Nessa perspectiva, o poema convida o leitor a tornar translúcida a sua própria experiência do mar, entendido em seu sentido literal ou simbólico, imagem daquilo que não é firme, que é arriscado e desconhecido, a partir da tradição clássica.
Em outras palavras, o clássico aparece aqui como fonte de inteligibilidade, o que faz com que Penélope, assim, assuma um papel central: sendo a primeira dessa série de mulheres, a única das três cuja experiência não foi modelada por uma figura literária anteriormente ali nomeada, é ela que, em última análise, nos ensina sobre o mar e os perigos de uma jornada marítima.
Poema lindo! Não conhecia. Fiquei curioso para ler mais de Langone. Acho sempre muito interessante observar essas múltiplas camadas de recepção.
Bravo!