Mito e filosofia na Grécia antiga
As relações entre poesia, mito e filosofia na Grécia antiga foram desde o início complexas.
Brisson, em sua síntese da questão, acha pertinente a hipótese de que a adoção da escrita no séc. VIII a.C., que, em princípio, colocava a leitura ao alcance de todos aqueles que eram alfabetizados, provocou o aparecimento de dois novos tipos de discurso, a história e a filosofia, que passaram a disputar espaço com a poesia, opondo-se a ela, por um lado, e, por outro, reconfigurando-a (Introdução à Filosofia do Mito, Paulus, 2014, p. 27).
Com a modificação dos hábitos mentais provocados pela escrita e com a necessidade dos novos discursos de se justificarem a si mesmos, os mitos passaram a ser fonte de perplexidade.
O primeiro filósofo do qual temos a notícia de ter criticado os poetas foi Xenófanes de Cólofon (séc. VI-V a.C.), que censurava o antropomorfismo da representação dos deuses, no que foi seguido por outros.
Esse tendência crítica, escreve Brisson, foi freada “por dois fenômenos: a alegoria, que pretendia salvar o valor explicativo dos mitos e salvaguardar sua validade moral ao discernir, sob a trama narrativa, um sentido profundo; e a tragédia, que reinterpreta os mitos em função dos valores da cidade” (p. 27).
Platão, no entanto, continuou a tradição inaugurada por Xenófanes, levando a querela entre poetas e filósofos a seu ápice.
Com efeito, é em algumas passagens dos Diálogos que o sentido dos termos mythos e lógos são fixados em oposição: lógos passa a designar não apenas o discurso em geral, mas especialmente o discurso verificável, enquanto o mythos, deixa de indicar a palavra eficaz e torna-se, ao menos nas passagens em que a oposição é construída, o discurso inverificável.
Brisson nota ainda uma outra contraposição: o mythos enquanto discurso narrativo x o lógos como discurso argumentativo.
Esse jogo de oposições aparece de modo claro em uma passagem do Protágoras (320c-328d), no qual, incitado defender sua tese de que a virtude pode ser ensinada e que o sofista é quem melhor pode ensiná-la, Protágoras faz uma narrativa e depois desenvolve um discurso argumentativo, chamando a narrativa de mythos e a argumentação de lógos.
É entendendo o mythos como um narrativa inverificável que Platão faz sua crítica aos poetas no livro II da República.
Mesmo assim, ele nunca negou sua importância, usando mitos tradicionais em diversas passagens e chegando mesmo a criar novos mitos. Segundo Brisson, Platão os emprega para falar de tudo aquilo que diz respeito à alma e ao passado longínquo, âmbitos inacessíveis tanto aos sentidos quanto à inteligência, bem como para tratar de questões éticas e políticas, por causa de seu poder de persuasão diante dos não filósofos (p. 54).
Se, no entanto, Platão não tentou salvar os mitos por meio da exegese alegórica, esse foi o caminho seguido por muitos.
É difícil chegar às origens da prática, mas, segundo Porfírio, ela remontaria ao séc. VI a.C., com Teágenes de Régio, que teria feito uma exegese física dos poemas de Homero, entendendo os deuses como elementos da natureza. Assim, Apolo deveria ser entendido como o fogo, Hera o ar, etc.
A alegoria foi assimilada por pensadores como Anaxágoras, Diógenes de Apolônia, Protágoras, Pródico de Ceos e outros. Depois de Platão, continuou sendo praticada, notadamente pelos filósofos cínicos e estoicos, sendo, por fim, assimilada à tradição do platonismo imperial.
(uma primeira versão deste texto aparece como parte do artigo Homero filósofo em Máximo de Tiro, publicado no livro A Escrita Grega no Império Romano, de 2020).