Certa vez, em algum momento dos anos finais do séc. V a.C., alguém pergunta a Apolodoro, um fervoroso discípulo de Sócrates que morava em Falero (região portuária de Atenas, não muito distante da cidade), a respeito de um banquete promovido por Ágaton, o tragediógrafo, no qual o seu mestre havia participado junto com outras figuras notáveis da época.
Homem impetuoso, Apolodoro, que havia se convertido à filosofia não fazia três anos, é um pouco rude com o amigo, recriminando-o por se dedicar mais ao comércio que à busca da sabedoria, mas lhe responde, dizendo que fazia poucos dias que um conhecido lhe havia feito a mesma pergunta, e começa o seu relato: esse banquete havia ocorrido há muito tempo, quando eles eram ainda crianças e Ágaton havia obtido sua primeira vitória em um concurso de tragédia, isto é, em 416 a.C.
É assim que se inicia o Banquete, talvez o mais literário dos diálogos de Platão, que tem como tema o amor.
É um lugar-comum, desde o Ágape e Éros de Anders Nygren (publicado em 1930) e o Quatro amores de C.S. Lewis (de 1960), notar que os gregos tinham diversas palavras para o que chamamos de amor. Lewis, em seu livro, fala em storgé, o amor familiar; philía, a amizade; ágape, o transbordar do amor divino; e éros, que pode ser entendido como a atração sexual e a paixão amorosa, mas que, de uma maneira mais ampla, indica o profundo desejo por algo que falta. Obviamente, o uso desses termos no grego é mais fluido e complexo, mas, se pensamos a partir dessa generalização, podemos dizer que, se o amor enquanto ágape é o foco do Novo Testamento, éros é o tema central do Banquete.
Isso não quer dizer, ao contrário do que poderíamos pensar a partir do famoso artigo de Gregory Vlastos, The Individual as an Object of Love in Plato (1973), que encontramos, nesse diálogo, uma teoria platônica do amor. O Banquete não é um tratado teorético, mas, como sugere sua cena final, na qual apenas Sócrates, Ágaton e Aristófanes restam acordados (223d), uma mistura entre tragédia, comédia e filosofia, isto é, um texto no qual seus aspectos filosóficos e literários se encontram indissoluvelmente ligados e que evoca, por essa mesma estrutura, o ambiente cultural de Atenas em sua era de ouro.
Dada a natureza dramática do Banquete, os menores detalhes são importantes.
Os personagens, que, apesar da ficcionalidade do texto, existiram de fato, foram cuidadosamente escolhidos: com a exceção de Aristófanes, todos eles também estão em um outro diálogo platônico, o Protágoras: Fedro e Erixímaco aparecem ali junto ao sofista Hípias, conversando com ele a respeito da natureza e dos fenômenos celestes (315c), enquanto Pausânias e Ágaton, encontram-se sentados ao lado de Pródico de Céos (315d-e), outro sofista, que se tornou conhecido pela sua técnica da sinonímia. Ainda, tal como no Banquete, Sócrates chega atrasado e, depois dele, aparece Alcebíades (316a).
Tais paralelos não são por acaso: se a grande questão do Protágoras, que também aparece no Mênon, é se a virtude pode ser ensinada, é no Banquete que Platão oferece uma resposta: não basta que alguém ensine a virtude; é preciso que o discípulo queira obtê-la, o que só acontece se ele for tomado por éros.
A estrutura também importa: constituído como a narrativa de uma narrativa (o relato de Apolodoro a respeito do que Aristodemo lhe havia contado, o texto se situa, portanto, em dois momentos distintos.
Em primeiro lugar, no dia em que o banquete ocorreu, por ocasião da primeira vitória de Ágaton no concurso de tragédia das Dionísias, isto é, em 416 a.C. Segundo, na data em que Apolodoro faz o relato a respeito do banquete, que Martha Nussbaum deduz da seguinte maneira: por um lado, Apolodoro diz que já fazia alguns anos que Ágaton não mais morava em Atenas (sua mudança, junto com Pausânias, para a Macedônia, aconteceu entre 408 e 407); por outro, ele não fala nada sobre a morte de Alcebíades, que ocorreu em 404 a.C. Ou seja, sua narrativa deve ter sido feita entre os anos 405-404 a.C.
São essas duas datas, a do banquete e a de sua narrativa, que dão, para os primeiros leitores de Platão, o tom trágico do diálogo.
Em 415, apenas alguns meses após o banquete, Erixímaco, junto com outros atenienses, foi acusado de ter mutilado estátuas de Hermes. Fedro e Alcebíades, por sua vez, foram acusados de fazer parte de um grupo que profanava os mistérios de Elêusis, fazendo paródias de seus ritos em reuniões particulares. Por causa disso, todos eles têm que ir embora de Atenas, o que também fazem Ágaton e Pausânias anos depois, possivelmente descontentes com os rumos que a cidade tomava na difícil fase final da guerra do Peloponeso. Em 404 a.C., Alcebíades é assassinado pelos persas, provavelmente em uma conspiração entre Lisandro, general espartano, e Crítias, um aristocrata ateniense tio de Platão. Por fim, em 399 a.C., Sócrates é condenado à morte por corromper a juventude e não honrar os deuses.
Com a escolha dos personagens e as datas dramáticas, Platão lembra a seus leitores que ser um intelectual em Atenas, para usar a expressão de Luciano Canfora, era um ofício perigoso, e mostra que a filosofia, fonte de alegria quando praticada, como o era por Sócrates e seus discípulos, entre amigos que buscam juntos uma vida boa (o que os gregos chamavam de eudaimonía), é também, como aparece no Fédon (64a), uma preparação para a morte e uma maneira de transcendê-la.
(Este texto faz parte da introdução da minha tradução do Banquete, que acaba de ser lançada).
Olá Professor, parabéns pelo lançamento da sua tradução do Banquete e ótima introdução.
Obs: O link da Amazon para seu livro está quebrado.