Existem hoje dois grandes paradigmas na leitura dos clássicos da filosofia: o analítico e o estrutural.
Na perspectiva analítica, recorrente em estudos de língua inglesa, o que importa é analisar argumentos, buscar precisão conceitual e manifestar, do modo mais claro possível, as teses esboçadas.
Para o método estrutural, criado como reação a um tipo de leitura mais descuidada que se praticava no início do século XX na França, que ou caía em anacronismos (considerando, por exemplo, Platão o pai do idealismo ou Descartes um precursor do cientificismo) ou que então acabava por fazer um historicismo raso, privilegiando interpretações genéticas que passavam por cima da letra do texto (e que o explicavam a partir de causas externas, como fatores econômicos, sociológicos ou políticos), a filosofia é uma atividade eminentemente discursiva, “explicitação e discurso", para usar a expressão de Goldschmidt, a se desenrolar em movimentos lógicos sucessivos, “no curso dos quais produz, abandona e ultrapassa teses ligadas umas às outras numa ordem por razões”; assim, a interpretação de um texto filosófico “consistirá em reaprender, conforme à intenção do autor, essa ordem por razões e em jamais separar as teses dos movimentos que as produziram”, ou seja, considerar o texto em sua totalidade, sem isolar as doutrinas filosóficas dos percursos que levaram até elas.
Ambos os paradigmas têm os seus méritos.
Com sua abordagem clara e direta, os analíticos conseguiram mostrar, por exemplo, que os filósofos antigos têm profundidade filosófica e coerência lógica (mesmo aqueles autores, como Plotino, que foram, por um tempo, considerados demasiadamente místicos e irracionais), preparando o terreno para a influência determinante que alguns deles tiveram no pensamento de autores contemporâneos como Alasdair MacIntyre, Michael Sandel, Martha Nussbaum e Julia Annas.
Por sua vez, o método estrutural ensinou o leitor do século XX a escapar dos riscos do anacronismo através da análise atenta do texto, de modo a captar sua complexidade e lógica interna; os estruturalistas nos tornaram leitores melhores, o que testemunha a qualidade do trabalho historiográfico realizado por sua influência.
No entanto, como todo paradigma, ambas as abordagens têm os seus limites.
Um dos mais fundamentais, a meu ver, fruto de um consenso tácito entre analíticos e continentais, é reduzir a filosofia ao discurso, encarando-a como uma questão de textos, teses e argumentos, e ignorando tudo aquilo que nela fundamenta ou transcende a linguagem.
O foco na estrutura e na lógica de um texto, ainda que importante, não pode ser todo o trabalho do intérprete, pois nem toda obra filosófica é um tratado argumentativo. Textos diversos podem se dirigir a públicos diversos e servir a propósitos diversos.
Além disso, podem conter uma série de subentendidos facilmente decodificáveis pelo público ao qual originariamente se dirigem, mas que são enigmáticos para os demais leitores. Uma das grandes tarefas de um comentador é justamente explicitar esses subentendidos e torná-los inteligíveis, na medida do possível, aos novos leitores.
Um texto não é uma estrutura linguística que pode ser abstraída, sem prejuízo, do contexto concreto no qual foi escrito e pela primeira vez recebido. Contra o mito iluminista da razão desencarnada, o intérprete deve reconhecer: mesmo os argumentos mais abstratos dos filósofos só ganham seu peso e medida se pensados em conjunto com uma tentativa de um retorno à circunstância, para falar como Ortega y Gasset, ou seja, junto ao esforço de serem compreendidos a partir das situações concretas que os geraram.
A importância disso pode ser captada, por exemplo, nos estudos de Platão: se por um lado, a pesquisa de analíticos e estruturalistas explicitou nuances argumentativas e problematizou as imagens de um Platão idealista ou neokantiano, tão em voga em tempos anteriores, por outro, ela se esqueceu, não poucas vezes, que os textos estudados não eram tratados, mas diálogos que, apesar do inegável conteúdo filosófico, não estavam tão distantes assim da comédia e da tragédia antiga. É justamente essa lacuna que os atuais comentadores platônicos da chamada terceira via buscam preencher.
Novamente, não desejo desmerecer a pesquisa em filosofia antiga feita sob a inspiração do método estrutural, mas não devemos deixar de notar que alguns estudiosos, formados nessa escola, em todo o seu rigor, acabaram por superá-la em suas limitações. Aqui devemos nos lembrar, por exemplo, de Pierre Hadot, cuja obra, assim considero, representa um verdadeiro avanço metodológico.
Em seu Philosophy as a way of life, Hadot escreve que é necessário “levar em conta todas as condições concretas nas quais eles (os filósofos antigos) escreveram e todas as restrições que pesaram sobre eles: o quadro geral da escola, a própria natureza da filosofia, gêneros literários, regras retóricas, imperativos dogmáticos e os modos tradicionais de raciocínio”.
Não se trata aqui de uma revitalização da abordagem genética, mas da atenção aos elementos textuais que apontam para além do texto. É a consciência de que interpretação de textos antigos deve considerar aspectos descurados pelas leituras mais tradicionais.
Não podemos nos esquecer de que não devemos ler um autor antigo do mesmo modo como se lê um recente, pois, ainda nas palavras de Hadot, “os trabalhos da Antiguidade foram produzidos em circunstâncias completamente diferentes das de seus equivalentes contemporâneos”.
Não é possível ler um diálogo platônico ou um texto de Plotino como um tratado filosófico atual, cuja preocupação com a clareza, rigor argumentativo e precisão terminológica refletem sua intenção de ser um texto teorético, dirigido a um público amplo de leitores versados nas convenções dos gêneros acadêmicos.
E por isso, é também importante levar em conta que os textos antigos não tinham necessariamente uma terminologia fixa e precisa, nem sempre refletiam sistemas filosóficos acabados e não manifestavam as preocupações contemporâneas que fazem os autores colocarem o rigor argumentativo e a coerência em primeiro lugar.
(este texto é uma adaptação da primeira seção do artigo Uma teoria platônica do amor? Gregory Vlastos e o Banquete de Platão, publicado na revista Fundamento, da UFOP).