Não é fácil dizer o que é a filosofia. Os filósofos, é o que se diz, discordam tanto entre si que nem mesmo conseguem entrar em acordo a respeito do que fazem.
Penso, no entanto, que podemos reduzir a discussão a quatro perspectivas.
A primeira é que a filosofia lida com certas ideias, defende ou refuta teses e trabalha com argumentos. Embora outras áreas do conhecimento também façam isso, ela o faz em disciplinas particulares: lógica, metafísica, ética, política etc.
A segunda a vê sobretudo como uma atividade crítica. Seu papel essencial seria a luta contra o dogmatismo, a refutação de doutrinas e a desconstrução de ideias e condutas irrefletidas.
A terceira a entende como um modo de vida. Ela consistiria em um olhar racional sobre a existência e no empenho por viver segundo esse olhar.
A quarta, por fim, é que ela seria a busca por uma visão racional ampla e profunda da Totalidade.
A primeira concepção é comum atualmente, especialmente nos meios universitários. A visão crítica também, sobretudo em ambientes ligados a certos tipos de ativismo político. A noção de que a filosofia é um modo de vida, que, de alguma maneira, foi proeminente entre os existencialistas no século XX, voltou a cena com Pierre Hadot, que a entendeu como uma chave de leitura para os textos dos filósofos antigos, bem como de autores posteriores tão variados como Montaigne, Kant, Nietzsche e Witgenstein. A visão da Totalidade foi a meta de Platão e seus discípulos, mas também a de Aristóteles e dos aristotélicos antigos e medievais, e de pensadores como Descartes e Hegel, Jacques Maritain, Ken Wilber e Edgar Morin.
Existiria uma unidade por trás delas?
Parece-me que sim. Mas uma unidade imagética, não doutrinal. Ela se encontra não em uma definição, mas em um símbolo: a figura de Sócrates dos diálogos de Platão.
Podemos dizer que a filosofia remonta a Tales de Mileto. É isso que dão a entender os próprios antigos a partir de Aristóteles. Esses pensadores, contudo, que hoje chamamos de pré-socráticos não chamavam a si mesmos de filósofos (mesmo Platão ainda os chamava de sophói, sábios) e nem, muitas vezes, como no caso de Parmênides, um iatromante que escreveu um poema em hexâmetros dactílicos sobre as revelações de uma deusa, e Empédocles, um mago que entendia sua obra como uma iniciação, agiam como um.
A palavra philosophía, apesar de atribuída a Pitágoras, indicava, no séc. V, o cultivo de uma cultura geral. Heródoto (Histórias I, 30), por exemplo, usa o particípio philosophéon, para explicar o motivo que levou Sólon a viajar e percorrer tantas regiões: por amar a sabedoria. O philósophos, no grego desta época, era uma pessoa que gostava de aprender e que tornava o aprendizado uma parte central de sua vida.
O termo só ganhou os contornos que têm até hoje com Platão, não, no entanto, porque ele definiu o que é o filósofo, embora ele o tenha definido várias vezes em seus textos, mas porque criou nosso imaginário a seu respeito, o que fez por meio de seu personagem mais memorável.
É que a nóesis, ensinava Aristóteles, vem da phantasía – o pensamento abstrato se constrói a partir do que está na imaginação. O símbolo é anterior ao conceito, poderíamos afirmar com Susan Langer, o que quer dizer que se queremos definir o filósofo, devemos, primeiro, imaginar quem é ele. Foi isso que fez Platão.
O que é filosofia?
É imitação de Sócrates, fazer o que ele fazia. Com efeito, nossas quatro definições se encontram encarnadas no Sócrates dos Diálogos. Neles, em vários momentos, o vemos elaborando argumentos e defendendo teses, mas também praticando o élenkhos, refutando ideias e condutas.
Além disso, ele é frequentemente encarado como átopos, fora de lugar. Sócrates não é como todo mundo. O seu modo de vida não é o da multidão, pois se fundamenta no lógos. "Uma vida não examinada não é digna de ser vivida", ele diz na Apologia. E nos livros VI e VII da República, quando fala da educação do filósofo, ele dá a entender que sua meta é alcançar uma visão racional ampla e profunda do Todo.
A filosofia se diz de muitos modos, mas todos eles se referem a um termo primeiro, o Sócrates de Platão. Sócrates é o primeiro analogado da filosofia.
De uma certa maneira, Tales é o primeiro filósofo, mas é Platão o criador da filosofia, graças à sua potência enquanto escritor e a Sócrates, o seu personagem.
Nas palavras de Jacyntho Brandão (O filósofo e o comediante), a filosofia é “um nome e um produto ateniense cujos contornos, mesmo que Sócrates possa tê-los delineado na ebulição do século anterior, não estarão dados antes do séc. IV, quando Platão e Isócrates requisitam o termo para designar aquilo que fazem”. É por retrospectiva, especialmente a partir de Aristóteles, que os pensadores da natureza, os physiológoi, “serão convocados para constituir uma genealogia para a própria filosofia”.
O Sócrates platônico, no entanto, não deve ser confundido com o Sócrates histórico, ainda que se inspire nele.
A questão socrática é uma das mais difíceis enfrentadas pelos historiadores da filosofia antiga. Alguns estudiosos, como Gregory Vlastos (Socrates: ironist and moral philosopher), acreditam que os diálogos aporéticos de Platão, aqueles que terminam sem uma solução clara para o problema examinado e que são considerados os primeiros que escreveu, seriam mais próximos do Sócrates real. Outros, como Charles Kahn (Plato and the socratic dialogue), defendem que mesmo esses são textos eminentemente platônicos e que, se terminam em aporia, é porque sua finalidade é despertar a curiosidade dos leitores para os diálogos subsequentes.
Kahn, todavia, ainda acredita que é possível conhecer o Sócrates histórico a partir da Apologia. Penso, no entanto, que mesmo ela está a serviço do projeto platônico, do qual seria uma introdução. Minha posição é que o Sócrates dos Diálogos, desde o início, é um personagem literário.
Não foi Platão, no entanto, que por primeiro se apropriou criativamente da memória de seu mestre.
De acordo com Aristóteles, em um fragmento de um de seus diálogos perdidos, o De Poetis, foi um certo Alexamenos de Teos o criador deste novo gênero de textos, cultivados pelos discípulos de Sócrates, que ficaram conhecidos como sokratikói lógoi, discursos socráticos.
Platão é certamente o mestre do gênero, mas não seu único praticante. Infelizmente, poucas das obras de outros autores chegaram até nós. Temos apenas os de Xenofonte, que também escreveu uma Apologia e um Banquete, bem como o Econômico e o Memoráveis, e fragmentos ou testemunhos de obras de autores que pertenciam ao círculo socrático como Fédon, Euclides de Mégara e Ésquino, entre outros. No entanto, de acordo com a estimação de Livio Rossetti (O diálogo socrático aberto e sua temporada mágica), na primeira metade do séc. IV a.C., “o grupo de socráticos que esteve envolvido na invenção e utilização do assim chamado diálogo socrático, composto por algo como de doze a quinze pessoas, foi autor de mais de duzentos trabalhos, divididos em número ainda maior de livros”.
Até onde posso entender, dada a maneira variada como esses autores apresentam Sócrates, a intenção dos discursos socráticos, tal como a dos diálogos platônicos, não foi puramente histórica. Como observa Momigliano (The Development of greek biography), “os socráticos fizeram experiências no gênero biográfico, e esses experimentos eram direcionados para a captura de potencialidades ao invés das realidades das vidas individuais”. O Sócrates dos textos, continua ele não era o Sócrates real, mas “o Sócrates potencial”, que serviu como um “guia para territórios ainda não explorados”.
Mas como Sócrates se tornou personagem de diálogos? Por que seus discípulos começaram a escrever obras nos quais ele era uma figura central?
Não foram os filósofos socráticos que inventaram o personagem de Sócrates. Se eles o usaram em seus textos, é porque estavam respondendo a aqueles que, de fato, o criaram: os comediógrafos.
Em seu ensaio The origins of the socratic dialogue, Diskin Clay escreve que “o único gênero de poesia que conheço que nos oferece um modelo claro para os discursos socráticos e a mimese das conversas de um personagem contemporâneo como Sócrates é a comédia ática”. Na verdade, considero que os lógoi sokratikói não foram apenas inspirados pelo modelo da comédia, mas surgiram como uma resposta literária à provocação literária que foi feita pelos comediógrafos anos antes.
Bruno Gripp, em sua dissertação de mestrado (Além das nuvens: crítica à filosofia na comédia antiga), mostrou que na primeira metade dos anos 20 do séc. V, as novas ideias desenvolvidas por sofistas e filósofos, que ainda não se diferenciavam aos olhos do grande público, tornaram-se objeto de atenção da comédia ateniense. Ele escreve:
Na verdade, possuímos um bom número de comédias que se referem e tratam da filosofia e do conflito entre os dois tipos de educação: As Cabras e Os Aduladores de Êupolis, Os Convivas e as Nuvens de Aristófanes, Conno de Amípsias, Os que vêem tudo de Cratino. Todas apresentam um outro dado em comum: As Cabras são anteriores à 89a. Olimpíada, ano de morte de Hipônico, isto é, anterior a 424 a.C.; Conno e As Nuvens, como bem sabemos, são de 423 a.C.; não sabemos a data dos Aduladores, mas ela não se afasta muito de 422, por causa da morte de Protágoras e sua presença em Atenas; Os Convivas de Aristófanes são aludidos nos Acarnenses, de 425 a.C.; Cratino morreu em 420, portanto sua comédia não pode ser posterior a isso. Ou seja, todas as comédias datam do período entre 426 e 422.
Nas peças deste período, encontramos alusões a sofistas como Górgias e Pródico (nas Aves de Aristófanes), e Protágoras (no Aduladores de Êupolis), bem como a filósofos como Diógenes de Apolônia (cujas doutrinas são ridicularizadas nas Nuvens de Aristófanes). Mas é Sócrates quem mais aparece. Aristófanes o coloca nas Nuvens e o menciona nas Aves (v. 1277-1283; 1553-1564) e nas Rãs (v. 1491-1499), mas ele também é citado em obras de Amípsias, Cálias, Telecides e Êupolis.
Por que o interesse da comédia, durante esses anos, por esses pensadores?
Trata-se, certamente, de um modismo, provavelmente causado pelo potencial cômico de tais personagens. Mas a comédia ateniense é um gênero político, cuja intenção, ao lado do riso, é discutir as questões da cidade. E nesse momento, filósofos e sofistas influenciavam jovens da aristocracia que desejavam adquirir eloquência e sabedoria para ascender na vida pública. Alguns estudiosos chegam a falar em um iluminismo ateniense, que suspeitava da religião tradicional, desprezava o nómos (os costumes ancestrais) e que provocou um intenso debate público, marcado pela acusação de impiedade feita contra Anaxágoras em 431 a.C., que o levou a sair de Atenas e se refugiar na Lâmpsaco, na Jônia, e pela discussão a respeito da validade dos oráculos que está pressuposta, como mostrou Bernard Knox (The Freedom of Oedipus) no Édipo rei de Sófocles, que foi encenado em 427 a.C.
É nesse contexto que, em 423 a.C., Aristófanes escreve As Nuvens, peça na qual, ao que tudo indica, Sócrates aparece pela primeira vez como um personagem literário.
Ele não é apresentado ali, entretanto, como um grande filósofo, mas como um sofista charlatão que corrompe a juventude e introduz novas divindades – justamente as acusações que Anito, Meleto e Lícon fariam contra ele no julgamento de 399 a.C. que o condenou à morte.
Tal como os socráticos no início do séc. IV, Aristófanes, neste momento, não está tão interessado em falar do Sócrates histórico, ainda que certas descrições que faz pareçam remeter a ele, já que também podem ser encontradas em Platão: os olhos arregalados e o olhar de soslaio, os pés descalços, etc. O Sócrates das Nuvens é um símbolo desse movimento intelectual emergente e incorpora aquilo que, aos olhos do grande público, era nele o mais proeminente: o ensino da retórica, o relativismo moral, as discussões abstratas e o ceticismo com relação aos deuses tradicionais.
Mas por que foi Sócrates o escolhido?
É que ele, em meio aos grandes pensadores da época, era o único ateniense. A comédia antiga foi, afinal, um gênero dramático ateniense, encenado para atenienses e que tratava de assuntos atenienses.
A peça, no fim das contas, parece ter contribuído para a consolidação da hostilidade contra Sócrates por parte de certos grupos da cidade. Com efeito, na Apologia, o filósofo responde mais aos antigos acusadores, que, por serem muitos, “não é possível saber nem dizer exatamente os seus nomes, exceto se algum deles for um certo comediógrafo”, que aqueles que efetivamente instituíram o processo contra ele.
Se o Sócrates da Apologia nega ter investigado “as coisas que estão suspensas no ar” e “tudo o que há abaixo da Terra” e diz que nunca ensinou a habilidade “de tornar o argumento mais fraco o mais forte” e que, na sua atividade filosófica, estava a serviço do deus do oráculo de Delfos, é porque, na peça de Aristófanes, ele não acredita na existência dos deuses (e coloca, em seu lugar, as Nuvens, divindades que, por serem feitas de ar e mudarem de forma a todo momento, são o símbolo por excelência do discurso sofista), corrompe o jovem Fidípides ensinando-o a fazer prevalecer o argumento injusto sobre o justo, afirma andar “pelos ares” e olhar “o sol de cima” e tem um discípulo que fica a observar o que está debaixo da Terra, enquanto, com o traseiro, estuda o céu. E, se ele afirma tão categoricamente que detém um saber puramente humano é porque quando entra em cena pela primeira vez nas Nuvens, aparece suspenso em um cesto, como um deus de uma tragédia grega, a falar como se fosse o detentor de uma sabedoria divina e um iniciador em mistérios arcanos.
Enfim, se a habilidade retórica dos sofistas era capaz de persuadir as multidões, a potência poética de Aristófanes foi capaz de algo mais perigoso: condensar inquietações difusas causadas pelo estranhamento de alguns diante da atividade de Sócrates em um símbolo. Foi este símbolo, é o que o próprio Sócrates da Apologia dá a entender, que o levou ao seu julgamento.
Seus discípulos, contudo, sabiam que não se combate a poesia com argumentos. Não se pode vencer um símbolo, mas é possível transformá-lo dando-lhe novas ressonâncias. Platão e seus companheiros entenderam que só venceriam “antiga querela entre a poesia e a filosofia” (República X 607b) se o filósofo também se tornasse poeta.
Foi que fizeram, misturando, em seus textos, investigação abstrata e caracterização dramática, transformando a figura de seu mestre: de charlatão a sábio. O plano deu certo. Atenas, a cidade que perseguia os filósofos, se tornou a capital da filosofia.
Coube a Platão, não a Aristófanes, a palavra final. E foi esta sua palavra, Sócrates, que definiu os contornos da razão no Ocidente.
(este ensaio é parte da introdução que escrevi para minha tradução das Apologias de Sócrates de Platão e Xenofonte, que acaba de ser publicada pela Vide).
Apontar a imagem de Sócrates como unidade encarnada da Filosofia é um caminho muito proveitoso. Sugiro a adição de outra estratégia, que você talvez possa explorar no futuro: uma abordagem institucional e das práticas que se desenvolveram em torno do termo "filosofia". Em outras palavras, uma espécie de sociologia intelectual da disciplina.
Penso que esse tipo de releitura nos ajuda a nos posicionarmos nas querelas contemporâneas em torno da "abertura/revisão do cânone", da "inclusão" de "outros modos de filosofar", etc. Historicamente, "filosofia" passou da imagem de Sócrates a (também) uma disciplina institucionalizada, com suas regras, seus critérios e práticas.
Belo post!
Belíssima aula!